09 novembro 2006

Cotidiano

Acordou com a cara no chão, no meio do quarto, como se tivesse sido arremessado da cama sendo puxado pelas roupas, não sem antes levar o criado mudo e duas prateleiras da parede. O rádio-relógio jazia quebrado ao lado do que antes era um enfeite dado por algum amigo que viajara ao nordeste, destas lembranças que as pessoas acham importante te dar para mostrar que, mesmo estando de férias, em praias ou qualquer outro lugar onde você pode deixar todas as suas preocupações engavetadas em casa, ainda assim fizeram questão de lembrar de você por algum motivo (provavelmente pra rir de que você desgraçadamente não está lá). Claro que muitos simplesmente compram uma porção e distribuem para quem chegar primeiro ou parecer mais conveniente no momento. É bom ser lembrado.

A cara no chão não parecia ter motivo aparente, assim como nada do caos que estava em todo o caminho percorrido da cama até ali. Saia sangue do nariz, que estava meio adormecido, possivelmente quebrado, mas isso também não era de todo mal, não saber o que aconteceu parecia mais incômodo no momento. Fora o nariz, os outros ossos e juntas e nervos e músculos pareciam responder muito bem ainda, mas não estava decidido a usa-los naquele momento. De todos os tombos que tivera na vida esse era o seu primeiro literal, estava ali curtindo o momento e, quem sabe, até ficar por ali mesmo, talvez dar um pulo até a geladeira se sentisse fome ou até o banheiro para pegar papel e estancar o sangramento (enquanto não o estivesse afogando, tudo bem). Não é sempre que realmente se toma um baque de verdade, seria interessante contar aos amigos depois como era a sensação, talvez ainda mais se conseguisse lembrar como diabos fora parar ali. Talvez. Talvez não fosse tão interessante assim. Achava que o mais provável fosse que acordara no meio da noite para beber água e, numa queda de pressão, daquelas que se tem quando se levanta rápido demais de algum lugar, caira e se espatifara contra todas as coisas no quarto... Sim, sem dúvida fora isso, nada de roupas puxadas, arremessos e afins, só um acidente comum. Ainda assim não tinha vontade de se mexer de onde estava, as coisas pareciam menos problemáticas daquele ângulo, era quase como um descanso após um período de atividade intensa, aquela queda no meio dos restos de seu enfeite, rádio relógio e uma infinidade tranqueiras que no fundo só estavam ali para juntar mais poeira. Praticamente algo ansiado e merecido.

A poça aumentava e incomodava um pouco mais, mas perto de outras coisas não chegava a ser algo que viesse a estragar aquele momento profundo de reflexão, diria até que seu melhor momento de lucidez. Quem sabe, se um dia sentisse vontade de levantar dali, não poderia escrever um livro de auto-ajuda ou alguma dessas coisas que pessoas acreditam que ajudam pessoas (o conceito de auto-ajuda sempre foi uma incógnita, pensou naquele momento. Se podem se auto-ajudar, porque então precisaram que alguém escrevesse um livro que lhes dissesse o que fazer?). Talvez ele pudesse ajudar pessoas realmente ao invés de escrever o tal livro, talvez pudesse visitar hospitais e conversar com quem quer que precisasse de um pouco de atenção (ei, é uma boa idéia!), se meteria com alguma ONG para preservação de espécies ou naquelas que se enfiam no meio do mato, para ensinar as pessoas como evitar uma série de problemas com meia dúzia de coisas que para ele eram óbvias, mas não devia ser assim com os menos favorecidos. Quase se sentia tentado a levantar dali ao pensar nessas coisas.

Seu corpo foi achado no oitavo dia, quando os vizinhos, que haviam percebido que nada se mexia na casa já no terceiro (exceto pelos gatos, que só depois descobriram como se alimentaram quando não havia mais ninguém para colocar comida para eles) deram parte à polícia de que havia algo de estranho. Mas o que era estranho era que todos sentiam alguam espécie de satisfação, não exatamente uma pontinha, como alguns gostariam de definir depois. Finalmente houve algum movimento que quebrou o marasmo em que suas vidas se arrastavam e ajudou a quebrar um pouco o tédio das coisas e, mesmo sentindo um pouco de remorso por isso, era impossível não curtir aquela sensação mesmo que somente por alguns momentos.

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